domingo, 6 de novembro de 2011

ZIZEK - O inconsciente é a política

O problema com a psicanálise é o mesmo que aquele com Hegel. Com Hegel, temos três leituras, aquela dos conservadores, aquela da esquerda, não só Marx, mas também Bakunin, e há 50 anos o surgimento de uma escabrosa leitura "liberal-hegeliano". Para identificar estas, procure a palavra "reconhecimento", é a palavra-chave dos "hegelianos liberais". Esta é uma visão  sem pretensão ontológica baseada unicamente sobre o reconhecimento mútuo, etc.

Com Freud temos a mesma coisa, temos os conservadores freudianos-lacanianos (por exemplo, Pierre Legendre) que argumentam que a mensagem de Lacan é: hoje a sociedade permissiva, narcisista é perigosa, ela conduz às psicoses e às depressões, temos de restaurar a autoridade da lei simbólica.
Em seguida temos os lacanianos de esquerda, e como com Hegel, vemos o surgimento dos "lacanianos-liberais".

Creio que a falta aí reenvia ao próprio Lacan que, em seus últimos anos, oscila entre dois modos ético-políticos. Cada um é pior que o outro se vocês quiserem minha opinião.
A primeira é a transgressão ética desenvolvida no  Seminário VII  (A ética)  sua leitura de Antígona.
Essa idéia do ato ético visto como uma violenta transgressão  que enquanto tal permanece excepcional.
Em seguida, isso que parece ser o oposto, mas na verdade é o mesmo, baseado no fato de que os momentos autênticos são raros e que é preciso retornar e se satisfazer do "semblante", você sabe esta falsa idéia Nietzscheniana de que a verdade  é muito forte para nós, em nossa vida diária devemos viver com as aparências e a única coisa que a análise nos traz  é a consciência de que essas aparências são ao final das contas ilusões.

Para dizer de forma simples, e acho que temos todo interesse em tentar ver as coisas de forma simples, temos aí uma forma de hedonismo cínico. A idéia é que depois de ter a horrível  experiência do real  neste momento de cegueira, você deve retornar à vida normal, mas você sabe que este é só um jogo social que jogamos e que não é preciso tomá-lo muito a sério.

Mas o que é interessante é que o último Lacan vai ainda mais longe neste caminho liberal e renuncia à sua idéia de transgressão violenta e nos últimos dez anos de seu ensinamento, sua idéia do fim do tratamento não é mais somente aquela da travessia do fantasma, mas aquela da identificação ao sintoma. Aqui está muito claro, eu posso ler citações no texto, onde ele continua a dizer, por exemplo esta: "não se deve forçar uma análise muito longa, quando o paciente acha que está feliz para sair, isso é suficiente". Apreenda essa idéia: não leve a coisa a termo, encontre um compromisso que será um pouco menos doloroso, e nas palavras de Lacan: que torne a vida um pouco mais fácil.
Assim, Lacan oscila entre estas duas versões, a primeira: ouse confrontar a verdade, arrisque tudo, ignore as consequências, não se preocupe com a cura, a cura virá por dela mesma. No fundo é uma idéia, na minha opinião, muito ingênua, eu diria pré-hegeliana, em relação à Fenomenologia do Espírito, e é curioso constatar que para Lacan, porque há ainda vestígios do  Grande Outro: "cuida de ti mesmo e  Deus irá protegê-lo."
No último Lacan, para colocá-lo simplesmente, isso se torna: "não deixe cair a verdade, seja modesto, suporte o sofrimento e  reorganize seus sintomas, isso é tudo que você pode fazer."

O que faz Miller nos últimos anos é desenvolver este discurso de uma maneira brutal.

Primeiramente ele presume que a mensagem de Lacan é rejeitar a verdade simbólica para se voltar para o gozo como a única realidade. A posição de Miller é: "seja consciente de que toda palavra é apenas semblant a única coisa que importa é o gozo".  É uma visão hedonista liberal que se resume a: "a única coisa que você pode fazer é encontrar o seu modo de gozo" aqui, ele se opõe à ciência e à psiquiatria, e afirma que a ciência não oferece essa liberdade, ele quer ao contrário prescrever a sua maneira de ser livre, ou de gozar. É uma posição cínica que exige: "Não contar com ninguém além de si mesmo para formular a idiossincrasia do seu gozo".

Deixe-me ler uma citação de muito mal gosto de Miller:  "a psicanálise revela os ideais sociais em sua natureza de semblant em relação ao real que é o real do gozo".  Esta é a posição cínica que consiste em dizer que o gozo é a única coisa que seja verdade.

Assim, o analista ocupa o lugar do irônico, cuidando de não intervir no campo político, ele faz de jeito que os semblantes permaneçam no seu local, garantindo que o sujeito, por si só, não os tome pelo real. Esta é uma leitura do “non dupes errent” que se resume dizer que se o sujeito quer se subtrair de seus semblantes, as coisas vão dar errado para ele.

"Aqueles que não percebem que a ciência se apoia nos sembrantes e que ela se funda no discurso do arbitrário do mestre, estes são "bad boys".  É Miller  quem disse isso. Outra citação: "no campo político, o psicanalista não pode propor projetos ele só pode se ralhar do projetos dos outros .... / ... devemos manter a ilusão do poder para que cada um possam continuar a gozar, não é preciso se prender à inconsistência do poder, mas considerá-lo como necessária". Temos o mesmo cinismo de Voltaire  que garante que Deus é uma invenção necessária de ser mantida para garantir a paz social. Não haveria pois sociedade sem repressão, sem identificação e acima de tudo, sem rotina. É  o puro hedonismo conservador.


Outra citação de Miller: "Há questões que não devemos colocar...  (meu deus um psicanalista que disse tal coisa!) ... Se você virar a tartaruga social de costas você não pode a revirar de volta".  A afirmação típica conservadora, infelizmente a posição de Miller hoje!


Contra esta idéia cínica hedonista de um sujeito que não quer  bascular os semblantes por medo do caos, eu afirmo - e eu estou chocado que Miller não entenda isso – veja a que ponto Lacan estava certo quando ele afirma "o inconsciente é a política".  Mesmo quando discutimos do inconsciente colocamos um julgamento político, eu não sou totalmente contra essa idéia de "construir a sua própria idiossincrática do gozo", mas afirmo que Miller equivocou-se ao unir esta injunção à ordem político-liberal, precisamente porque o capitalismo não permite essa diversidade de "modo de gozar" e ao contrário tende a nos padronizar sempre.

É por isso que eu digo que Miller foi totalmente equivocado, vocês sabem quando ele iniciou este grande movimento contra a padronização e subordinação da psicanálise ao  controle do estado, ele me pediu várias vezes para fazer intervenções para apoiar seu movimento. Desculpe, mas o problema é que ele inclui esse movimento  diretamente em uma posição de direita neoliberal. Por trás desta ideia de Estado totalitário que quer decidir quem está doente ou não, como ser feliz e assim por diante, ele não vê a contradição inerente à sua ideologia liberal. Ao mesmo tempo em que ele se opõe à padronização ele defende uma idiossincrasia do gozo que não deve perturbar a ordem social, ou seja, fazendo as contas, uma idiossincrasia prescrita e padronizada. Por trás da aparente infinidade de idiossincrasias, encontra-se uma horrível uniformidade.


Meu último ponto, crucial teoricamente: a noção de gozo e de real que tem Miller é totalmente errada em termos lacanianos. Entre o real e o semblante, Lacan sempre defendeu que o cinismo é uma falsa posição, porque o real não é exatamente atrás, escondido pelo semblante, é o real do semblante. Se você destrói o semblante você perde também o real. Isso me lembra aquela piada de Alphonse Allais: "Olhe para esta menina, que vergonha! Sob sua roupa  ela está totalmente nua! "É isso o real!

Em outras palavras, Lacan não é cínico, porque o cinismo consiste em crer que as aparências são meras aparências como o objeto da psicanálise é estar consciente de que o real e é o real das aparências, o real não está oculto pelas aparências, ele é incluído nestas aparências. A leitura cínica de Miller "non dupes errent" é: "Eu sei que tudo é somente ilusão e eu aceito cinicamente o espetáculo social". Mas isso não é o que queria dizer Lacan, ao contrário, para Lacan "non dupes errent" se endereça os cínicos que não vêem que o real está incluído nas aparências.


Politicamente falando, se vocês adotam esta posição vocês devem rejeitar a posição individualista hedonista e entender que o campo social não se opõe ao real do sujeito, mas que o real do sujeito se inscreve ele mesmo no campo social. Miller caiu nisso que eu considero o mais horrível do ceticismo pós-moderno que é uma atitude ontologicamente contra-revolucionária que se resume assim: "Embora o mundo seja injusto e imperfeito, qualquer projeto de mudança é apenas uma pura abstração metafísica que não vai mudar nada". A beleza desta posição, é claro, é que bem que ela seja reacionária, ela parece ainda mais radical do que a crítica radical. A verdadeira resposta lacaniana aqui, eu creio, é que se você põe o real no interior do simbólico, como o seu vazio e a sua inconsistência, eu penso que é a maior conclusão de Lacan, o real não é um além inacessível, o real é isso que no simbolismo não se simboliza. Se você o coloca nesse sentido, não se trata de de construir uma sociedade utópica ideal mas pelo menos você pode mudar radicalmente a ordem das aparências, você pode radicalmente reestruturar a ordem das aparências.


Com certeza as aparências são aparências, mas, novamente, Lacan é um gênio se você ler atentamente, para ele o real é também uma aparência do real. Sinto muito, mas vocês podem desmistificar o poder, vocês podem melhorar drasticamente a democracia, e o "segredo de Miller" em uma verdadeira democracia pode ser compartilhado por todos, isto é, uma desmistificação do poder que não teria nada de privilégio, se reduz a uma função como outra qualquer. A democracia é um bom exemplo de como o real poderia caber na ordem simbólica!


Eis a escolha da psicanálise hoje: deixa-se tomar neste capitalismo cínico hedonista do tipo "Eu sou contra a pena de morte, mas por agora o melhor é mantê-la" - sim, existem analistas que pensam coisas parecidas! – Ou, vocês sabem, vocês podem ter um momento de heroísmo, está certo é semblante, mas é semblante com o real dentro... Lacan o disse, os semblantes não são iguais, eles não são todos idênticos enquanto semblantes... Desculpe por ser um pouco longo, mas é minha natureza!

Observações

Esta é uma tradução feita a partir de uma outra tradução (do inglês para o francês) de uma transcrição dos 10 últimos minutos de uma conferência que Zizek deu em Birbeck em 23 de março de 2011. O texto em francês assim como a conferência na íntegra em inglês podem ser acessados em: http://cdsonline.blog.lemonde.fr/2011/08/31/linconscient-cest-la-politique/#xtor=RSS-32280322

Se você tiver sugestões para melhorar a tradução, por favor, não exite em enviar. Minha intensão com esta postagem é fomentar este importante ponto sempre levantado por Zizek sobre a necessidade de uma psicanálise crítica.  



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